A Lenda de Floripes
No sítio do Moinho do Sobrado, havia, antigamente, uma casa onde aparecia à janela, noite fora, uma formosa mulher vestida de branco.
O único que se atrevia a andar por aquelas bandas à noite era um sujeito de meia idade - o compadre Zé - que se embriagava e adormecia na rua, sem receio.
A mulher de branco aproximava-se do bêbado, fazia-lhe meiguices e até se sentava a seu lado.
O compadre Zé contava a sua história, sem convencer ninguém a deslocar-se ao local, para a comprovar. No entanto, o compadre Zé tinha um amigo mais jovem, que se iria casar brevemente. Aproveitando-se do evento, promete ao amigo oferecer-lhe um terreno como prenda de casamento, caso ele tivesse a coragem de o acompanhar a ver o fantasma.
Este, transido de medo, lá foi à aventura, atendendo ao grande jeito que lhe fazia a prenda.
Sentou-se numa pedra, junto ao Moinho do Sobrado, e esperou pelas doze badaladas. Nesse momento, surge da porta do Moinho uma mulher vestida de branco até aos pés. O vestido terminava numa bainha esfarrapada, a cobrir-lhe os pés descalços. A mulher aproximou-se, com a face envolta num véu e uma flor nos cabelos loiros.
Julião, assim se chamava o amigo do compadre Zé, pergunta-lhe quem era e donde vinha.
- Sou a desditosa Floripes - respondeu, numa expressão triste.
- O que faz por aqui?
- Sou uma moura encantada. Quando a minha raça foi expulsa da província, viu-se o meu pai obrigado a partir, sem poder prevenir-me. Eu tinha um namorado que também fugiu e aqui fiquei sozinha, à espera, a cada momento, que o meu pai me viesse buscar. Numa noite em que esperava, vi, ao longe, a luz de uma embarcação. A noite era de tormenta e o barco escangalhou-se de encontro aos rochedos. Não era o meu pai que ali vinha: era o meu namorado, que foi engolido pelas ondas. Soube o meu pai deste funesto acontecimento e, vendo que não lhe era possível vir buscar-me, encantou-me de lá.
Julião, penalizado com a triste história, logo pensou em oferecer-se para salvar a moura e perguntou:
— Existe algum meio de a salvar?
— Há, sim - respondeu a moura.
— Que meio?
— É necessário que um homem me dê um abraço, à beira de um rio, e me fira no braço contíguo ao coração. Logo que tal aconteça, irei de imediato para junto dos meus familiares. Mas existe uma dificuldade.
— Que dificuldade? - perguntou Julião, quase resolvido a ser o seu libertador.
— O homem que me abraçar e me ferir terá de me acompanhar até África, atravessar o oceano com duas velas acesas e casar comigo à chegada.
— Isso é que eu não poderei fazer. Já tenho casamento marcado com a minha Aninhas.
— Então, continuarei novamente encantada – respondeu a moura, soluçando – Até agora, ninguém se atreveu a tanto sacrifício!
A moura continuou o seu encantamento durante muito tempo, ainda, sentada no cais, com os pés na água, esperando o seu pai voltar de África. Era, por vezes, vista no cais, sempre de noite, a conversar com um menino de olhos grandes e com gorro encarnado. Seria o menino algum mouro que ali também ficou encantado? Ninguém sabe responder...
Alguns olhanenses mais antigos acreditavam tanto nesta lenda que diziam que a Floripes era vista também durante o dia a fazer compras em lojas, onde pagava com uma moeda de ouro e sempre desaparecia sem receber o troco. Ainda hoje, quando alguém, por qualquer razão, não recebe o troco, se diz "És como a Floripes, não queres a torna!".
A Floripes foi também a personificação do medo do transcendente. Quando se quer acautelar alguém, ainda se diz "Vê lá se te aparece a Floripes!".
O Dr. José Barbosa conta no seu livro (Barbosa, 1993) esta história curiosa, ocorrida durante a Primeira Guerra Mundial: numa trincheira da Flandres, defendida por soldados portugueses, numa noite invernosa, dois olhanenses, que estavam de sentinela, viram surgir da neve um vulto branco de mulher. O pavor de estarem a ver a Floripes paralisou-lhes, por momentos, a capacidade de premirem o gatilho! Foram os momentos necessários para compreenderem que o vulto também não seria um soldado inimigo. E foi assim que a Floripes salvou a vida a uma mulher belga, que fugia do lado alemão!
Talvez este salvamento tivesse desencantado, finalmente, a Floripes, pois há muito tempo a moura deixou de aparecer. Terá regressado finalmente à sua terra?
Uma nota final: Miguel Gonçalves Mendes realizou em 2007 o filme Floripes, já editado em vídeo, cujo trailer pode ser visto no site da produtora Jumpcut.
António Paula Brito
No sítio do Moinho do Sobrado, havia, antigamente, uma casa onde aparecia à janela, noite fora, uma formosa mulher vestida de branco.
O único que se atrevia a andar por aquelas bandas à noite era um sujeito de meia idade - o compadre Zé - que se embriagava e adormecia na rua, sem receio.
A mulher de branco aproximava-se do bêbado, fazia-lhe meiguices e até se sentava a seu lado.
O compadre Zé contava a sua história, sem convencer ninguém a deslocar-se ao local, para a comprovar. No entanto, o compadre Zé tinha um amigo mais jovem, que se iria casar brevemente. Aproveitando-se do evento, promete ao amigo oferecer-lhe um terreno como prenda de casamento, caso ele tivesse a coragem de o acompanhar a ver o fantasma.
Este, transido de medo, lá foi à aventura, atendendo ao grande jeito que lhe fazia a prenda.
Sentou-se numa pedra, junto ao Moinho do Sobrado, e esperou pelas doze badaladas. Nesse momento, surge da porta do Moinho uma mulher vestida de branco até aos pés. O vestido terminava numa bainha esfarrapada, a cobrir-lhe os pés descalços. A mulher aproximou-se, com a face envolta num véu e uma flor nos cabelos loiros.
Julião, assim se chamava o amigo do compadre Zé, pergunta-lhe quem era e donde vinha.
- Sou a desditosa Floripes - respondeu, numa expressão triste.
- O que faz por aqui?
- Sou uma moura encantada. Quando a minha raça foi expulsa da província, viu-se o meu pai obrigado a partir, sem poder prevenir-me. Eu tinha um namorado que também fugiu e aqui fiquei sozinha, à espera, a cada momento, que o meu pai me viesse buscar. Numa noite em que esperava, vi, ao longe, a luz de uma embarcação. A noite era de tormenta e o barco escangalhou-se de encontro aos rochedos. Não era o meu pai que ali vinha: era o meu namorado, que foi engolido pelas ondas. Soube o meu pai deste funesto acontecimento e, vendo que não lhe era possível vir buscar-me, encantou-me de lá.
Julião, penalizado com a triste história, logo pensou em oferecer-se para salvar a moura e perguntou:
— Existe algum meio de a salvar?
— Há, sim - respondeu a moura.
— Que meio?
— É necessário que um homem me dê um abraço, à beira de um rio, e me fira no braço contíguo ao coração. Logo que tal aconteça, irei de imediato para junto dos meus familiares. Mas existe uma dificuldade.
— Que dificuldade? - perguntou Julião, quase resolvido a ser o seu libertador.
— O homem que me abraçar e me ferir terá de me acompanhar até África, atravessar o oceano com duas velas acesas e casar comigo à chegada.
— Isso é que eu não poderei fazer. Já tenho casamento marcado com a minha Aninhas.
— Então, continuarei novamente encantada – respondeu a moura, soluçando – Até agora, ninguém se atreveu a tanto sacrifício!
A moura continuou o seu encantamento durante muito tempo, ainda, sentada no cais, com os pés na água, esperando o seu pai voltar de África. Era, por vezes, vista no cais, sempre de noite, a conversar com um menino de olhos grandes e com gorro encarnado. Seria o menino algum mouro que ali também ficou encantado? Ninguém sabe responder...
Alguns olhanenses mais antigos acreditavam tanto nesta lenda que diziam que a Floripes era vista também durante o dia a fazer compras em lojas, onde pagava com uma moeda de ouro e sempre desaparecia sem receber o troco. Ainda hoje, quando alguém, por qualquer razão, não recebe o troco, se diz "És como a Floripes, não queres a torna!".
A Floripes foi também a personificação do medo do transcendente. Quando se quer acautelar alguém, ainda se diz "Vê lá se te aparece a Floripes!".
O Dr. José Barbosa conta no seu livro (Barbosa, 1993) esta história curiosa, ocorrida durante a Primeira Guerra Mundial: numa trincheira da Flandres, defendida por soldados portugueses, numa noite invernosa, dois olhanenses, que estavam de sentinela, viram surgir da neve um vulto branco de mulher. O pavor de estarem a ver a Floripes paralisou-lhes, por momentos, a capacidade de premirem o gatilho! Foram os momentos necessários para compreenderem que o vulto também não seria um soldado inimigo. E foi assim que a Floripes salvou a vida a uma mulher belga, que fugia do lado alemão!
Talvez este salvamento tivesse desencantado, finalmente, a Floripes, pois há muito tempo a moura deixou de aparecer. Terá regressado finalmente à sua terra?
Uma nota final: Miguel Gonçalves Mendes realizou em 2007 o filme Floripes, já editado em vídeo, cujo trailer pode ser visto no site da produtora Jumpcut.
António Paula Brito